Consciência Xamânica e Miração – Alex Polari de Alverga

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Alex Polari de Alverga

Desde moleque, Alex Polari quer fazer revolução. Primeiro, como militante político na ditadura. Foi perseguido, torturado e preso por nove anos. Solto, descobriu na ayahuasca uma missão ainda maior: mudar a sociedade, e a si mesmo, através de um despertar espiritual. Um dos líderes da maior comunidade do Santo Daime no mundo, com raízes que se estendem do Acre à Holanda, ele anuncia: “O mundo só vai mudar quando a gente perceber que somos mais do que matéria… Somos luz”

Conheça mais sobre o Mestre Alex Polari de Alverga em sua entrevista para a revista TRIP

https://revistatrip.uol.com.br/trip/alex-polari

 

 

POR BRUNO TORTURRA NOGUEIRA - REVISTA TRIP
POR BRUNO TORTURRA NOGUEIRA – REVISTA TRIP

 

 

Transcrição do audio

 

Pode-se dizer que o xamanismo é o sistema de conhecimento espiritual mais arcaico que se conhece. E que, desde o começo, sua prática sempre esteve associada ao uso de enteógenos. Além de participar na maior parte de todas essas sensações, próprias dos demais estados expandidos de consciência, a consciência xamânica ou o estado de consciência xamânico também tem suas peculiaridades. A sua própria e já clássica definição como sendo “a arte do êxtase”, já pressupõe que o xamã detém um conhecimento específico de operar no êxtase e esta é a sua maior arte. Através dela, ele se aproxima de forma consciente até o máximo limiar possível da aniquilação. É este o vôo do xamã: atingir a realidade além da nossa percepção usual, mantendo sempre aberta as portas de acesso ao mundo espiritual. Porém o mais importante que queremos destacar dentro do xamanismo é a vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do transe. O Eu se torna o veículo divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath) que alça vôo em busca dos palácios celestes. Mas ele não se limita em contemplar seus átrios e fachadas reluzentes. Ele caminha por seus labirintos, túneis secretos, ele procura conhecer o que se passa em cada um de seus aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da “miração”, um estado de consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão ritual do Santo Daime, que gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.

A “miração” é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo “mirar” corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo “mirante”, que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A palavra “miração” une contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do êxtase xamânico. E que é simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao sol. Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma iniciação quietista – que prepara o neófito através do silêncio e da meditação – e a iniciação xamãnica que o convida para ser protagonista totalmente responsável pelo seu desdobramento astral e vôo espiritual. Nele, somos convidados a participar de um filme em que as cenas que se desenrolam na tela, dependem, em última instância, do que está ocorrendo no interior da nossa consciência. Em outras palavras: só conseguiremos salvar a donzela do “filme astral” das garras do vilão, se a nossa disposição para tanto for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e a sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático. Caso contrário, a “narrativa visionária” sai do nosso controle podendo acontecer um desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao êxtase.

Estamos querendo dizer que dentro da miração o estado de ação e contemplação são como as faces complementares de uma mesma moeda. A mente, antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta várias outras fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência visionária da imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização. As imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro da “miração” são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa ordem de realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que a “miração” ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro do cenário feérico e numinoso da realidade xamãnica.

Esse nível de consciência atingido pela “miração” vem quase sempre acompanhado de uma voz interior que guia, acompanha ou dirige o processo. esta é, ao meu ver, a faceta mais incomum e maravilhosa da “miração” do Daime. Durante o seu transcurso nossa consciência participa dos fenômenos psíquicos, noéticos e espirituais, através dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu comparece nos momentos decisivos e brevíssimos onde se decide sobre o nosso destino em meio às vagas probabilidades do mar de indeterminações quânticas. Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável e eterno, manifestamos vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos a tecer a trama do próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da realidade e da vida. Isso significa que, no êxtase da “miração”, estamos travando um diálogo com Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos sendo convocados para essa grande responsabilidade de sermos co-criadores do universo. E sem dúvida, só um destino com tal nobreza justifica o plano da criação divina, as provas da evolução, o porquê da queda luciférica, a entrada em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-lo e reunificá-lo com a verdade até o final dos tempos. Receber essa missão é o cerne da Revelação em todos os tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é adquirir a força de vontade suficiente para executar tudo o que foi revelado na miração.

Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e de coragem durante o vôo xamãnico poderia desestabilizar a “miração”, ou o que é pior, fazer com que o fio narrativo da experiência visionária tenda para um desfecho desfavorável. Nesses reinos espirituais de deslumbrante beleza, parece que impera uma terrível justiça. O homem não está programado para ser perfeito. Ele tem que biológica, psicológica, social, moral e espiritualmente falando, escolher ser perfeito. Isso se faz através da faca de dois gumes do seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por um lado supera em estatura os deuses, devas e querubins, enquanto que por outro, se torna presa fácil da ambivalência de sua frágil inconsistência humana. O Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita da ruptura do ego frente ao sublime, como sendo o momento em que, dentro da meditação, o meditador, sob a inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda), enfrenta as entidades terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o ego consegue se apossar do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente. Nesses momentos, as visões podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e isso está associado aos efeitos purgativos e miméticos da bebida enteógena indutora da “miração”. Reconhecido porém o impostor, é a hora da consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu desafio: Decifra-me ou te devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho compatível com a nossa presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não tivermos verdade para apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos come. O Poder nos cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar no caminho. Pois sem a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o impostor.

É o que Sebastião Mota, um dos principais “padrinhos” do Daime chama da necessidade de “ser em vez de parecer”. Ser verdadeiro é pois a ciência para entramos totalmente seguros nos estados elevados de consciência e deles conseguirmos sair, trazendo no retorno novas aquisições para continuarmos a Busca. Nos níveis sutis, a verdade atrai a verdade. O ser manifestado enquanto verdade é a matéria prima da criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se apresenta a nós na miração aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças do seu quebra-cabeças divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra. A verdade do ser é exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para condicionamentos mentais, hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou papéis sociais. Se o nosso coração nos acusa, é porque não temos verdade. E sempre que esta falta de verdade interromper a nossa “miração”, desestabilizando-a, devemos aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos conceda a chance de nossa transformação. O sofrimento e o desconforto, que às vezes essa disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a autêntica terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos afastamos das ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do nobre script que Deus nos reservou.

Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da experiência mística, expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação extraordinária que é trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas oficinas seráficas da criação divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à atuação do Eu Superior no interior das imagens visionárias, como se a “miração” fosse um jogo interativo de “realidade virtual espiritual”. Para que esse processo traga benefícios que possam ser incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.

Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos referir sucintamente a duas questões conexas à nossa abordagem de estado de consciência xamânico da “miração”. Trata-se do carma e da mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura xamânica. Num certo sentido, a cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses estados elevados de consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna sobre as causas dos desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências visionárias do Eu no interior da “miração” também ocorre dele se lembrar de fatos relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões cármicos que precisam ser interrompidos nessa encarnação.

Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas ao transe e à incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de pequenos “eus” que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à primeira distração nossa, entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono. Em alguns estágios da “miração” podemos perceber esses “eus” como seres. Podemos perceber que cada pensamento que flui na nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor ajustar o nosso dial mediúnico para captar apenas a freqüência dos seres que nos interessam. Mas nem sempre podemos escolher o que chega à nossa mente. Portanto esse canal mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus pensamentos e afastar as más influências psíquicas e espirituais que podem se tornar nossos futuros obsessores.

Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da “miração” compreendido como um estado de percepção mística que guarda várias semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos um aspecto da “miração”, a saber o da relação interativa do Eu com as visões, característica da tradição xamânica. Isso porque, a “miração” é ao mesmo tempo uma realidade visionária em movimento e um estado de contemplação extático. À maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e possibilidades de realização. Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes passa tempo trabalhando apenas alguns fotogramas. Sua meta suprema é a realização do Eu superior do homem. Apesar da ajuda inestimável das plantas sagradas para a sua consecução, o trabalho espiritual da “miração” nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de se manter coerente com os seus ensinos.

Algumas vezes, através da “miração”, temos uma percepção clara da realidade espiritual da vida além do corpo. Penetramos assim no mistério que a nossa ignorância chama de morte, mas que não passa de uma transição para um outro estado de consciência. Voltar dessa experiência da “morte” com conhecimento do que isso seja, significa ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação, independente do credo que cada um professe.

Por isso consagramos o ser divino presente nessas plantas amigas e professoras do homem e a “miração” que ela nos fornece. Mesmo que o seu uso responsável seja sempre benéfico, é porém dentro de um contexto ritual e religioso, que sentimos uma maior segurança para a utilização profilática e terapêutica dos enteógenos.

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