Este artigo discute o bem-estar subjetivo dos adeptos de ayahuasca, a partir dos conceitos de qualidade de vida e bem-estar subjetivo.
Este artigo esta dividido em duas partes, sendo a primeira uma revisão da literatura científica publicada e uma segunda parte onde estabeleceu-se comparações dos dados obtidos e entrevistas com adeptos de Ayahuasca.
Destaca-se o bem-estar subjetivo nessas categorias:
- desenvolvimento do autoconhecimento,
- favorecimento à prevenção ao uso/abuso de drogas,
- um maior domínio de si e do ambiente
- uma melhoria no relacionamento social.
Este é um resumo do Artigo “Subjective well-being and quality of life for followers of ayahuasca”, escrito pelos autores Cleber Lizardo de Assis, Deyse Ferraciolli Faria e Laís Fernanda Tenório Lins. Para ler o artigo completo visite o link abaixo:
https://lizardodeassis.wordpress.com
Primeira Parte: Revisão de Literatura
1. Em relação à categoria “Autoconhecimento”
Durante o efeito do chá, o sujeito consegue se ver fora do próprio corpo e também entra em contato com o que é mais próprio e profundo de si. Com isso, ele se percebe no mundo e define quem é e quem não é.
Quando desenvolvido o autoconhecimento, o sujeito se percebe e compreende tudo à sua volta com mais clareza e honestidade.
Isso facilita as atividades diárias, bem como as relações interpessoais. Ele passa a conhecer melhor as próprias emoções e comportamentos.
O consumo do chá traz para o sujeito a reflexão de alguns aspectos que modificam comportamentos, são eles:
- comunicar-se de modo mais sensível com o ambiente,
- fazer parte da comunidade,
- repensar valores aprendidos,
- limpar-se de coisas negativas e
- aprender novas maneiras de confrontar as situações cotidianas
Isso provoca no indivíduo, o esclarecimento de quem ele é e como ele reage no mundo.
São esses os elementos que desenvolvem o autoconhecimento, entendido como aprimoramento do conhecimento de si, tal como descrito em alguns dicionários.
Mas, para além do contexto em que se insere a ayahuasca, ressalta-se, aqui, a importância do autoconhecimento, como apontada por alguns pensadores, pois a motivação pessoal, quando tornada consciente, é relevante para o estabelecimento de uma vida saudável, na medida em que a pessoa aprende a observar seus comportamentos e, consequentemente, a manejar a si mesma e as condições em que vive.
2. Em relação à categoria “Tratamento da dependência”
Há relatos de grupos terapêuticos, de antropólogos, psicólogos e psiquiatras sobre a eficácia terapêutica da ayahuasca no tratamento da dependência de psicoativos.
No entanto, deve-se registrar a existência de falhas de pesquisas realizadas sem bases sólidas ou fundamento em estudos com desenhos metodológicos rigorosos.
Assim, o sucesso do tratamento não depende somente da farmacologia da ayahuasca, mas também:
- das normas do contexto ritual,
- do zelo religioso,
- da influência do líder e
- da dinâmica social do grupo.
Além disso, não pode haver dissociação entre a ingestão do chá, o processo psicossocial e o contexto ritual em que esta bebida é consumida.
A religiosidade é destacada nesses rituais, e é um fator importante para que um sujeito pare de consumir substâncias psicoativas.
Além dos efeitos psicológicos e comportamentais do chá, questões como recomendações, normas e punições dentro do grupo religioso são os fatores que, em conjunto, fazem uma pessoa abandonar uso de substâncias psicoativas.
3. Em relação à categoria “Domínio de si e do ambiente”
Durante o transe induzido pelo chá, o indivíduo afirma uma liberdade individual de pôr em prática tudo o que viu na miração, adequando ao seu modo de ser.
Isso se dá por meio do aprendizado com a ayahuasca, que fornece ferramentas para controle do ambiente.
Por meio das imagens percebidas durante as mirações, o indivíduo percorre mundos (físico e espiritual) e questiona a sua existência, desenvolve uma espiritualidade que busca equilíbrio, aprendendo, assim, a se transformar manejando sua vida.
Devido a essas mirações, o sujeito passa a confrontar seus conhecimentos a priori com a razão construída a partir de então.
O aprendizado com a ayahuasca permite que o indivíduo adquira conhecimentos sobre exercícios de práticas de bem-estar, como cuidados com o corpo (dietas e abstinências) e desenvolvimento de autocontrole.
O domínio de si também pode ser visto na categoria autoconhecimento, e o cuidado com o corpo na categoria tratamento da dependência.
4. Em relação à categoria “Relações sociais”
Após as mirações, os sujeitos trocam e compartilham as visões, sensações e percepções dentro do grupo.
Dessa forma, eles interpretam aspectos das mirações uns dos outros, fortalecendo o vínculo do grupo.
Também, com a ajuda do grupo ou de um membro mais próximo, o sujeito desvenda verdades que sozinho não conseguiria contemplar.
Toda essa vivência dentro do grupo religioso é aplicada também na vida social fora da instituição.
O aprendizado induzido pelas mirações e pela comunicação produz mudanças positivas nos comportamentos com familiares e amigos.
Tornam-se relações mais pacientes e amorosas por parte do sujeito ayahuasqueiro.
Essas práticas sociais dentro do grupo religioso também influenciam a tomada de decisão de parar de consumir substâncias psicoativas e diminuir ou abandonar hábitos alimentares considerados poucos saudáveis.
Essas decisões podem ser vistas nas dietas e abstinências dentro da categoria tratamento da dependência.
Segunda Parte: Entrevista com Participantes
Análise das emissões verbais dos sujeitos/entrevistas de campo
1. Em relação à categoria “Tratamento/Prevenção à dependência química”
A vida social dos indivíduos, antes de sua inserção na religião, era geralmente regrada por festas que continham bebidas e substâncias químicas.
Atualmente, os sócios compartilham outra visão de socialização, nas quais não há mais a necessidade do uso dessas substâncias.
Uma característica presente no álcool é a estimulação o cérebro fazendo com que o sujeito fique desinibido e eufórico, e faça coisas que normalmente não faria.
Nessas condições, portanto, ele não tem controle de seus comportamentos e atos, o que não é recomendado pela religião.
O sujeito aponta um estilo de vida anterior, de uso de drogas, marcado por uma mudança no que se refere aos cuidados da saúde de forma geral.
A conscientização advém do processo ritual do consumo do chá, das normas da UDV, e até mesmo da condução da sessão.
Mesmo não sendo um indivíduo classificado como dependente químico, por não possuir comportamentos compulsivos em relação às drogas, ele adquire comportamentos de prevenção aos novos hábitos decorrentes da religião e do processo ritualístico.
Um elemento condicionante para essa mudança de um estilo de vida menos saudável para um mais saudável está relacionado à existência de níveis de exigência e de evoluções de papéis dentro da hierarquia religiosa, uma vez que a UDV, das religiões ayahuasqueiras, é a mais democrática e hierarquizada.
Para subir os graus, o sócio deve cumprir certas normas e condutas que, consequentemente, mudarão seus comportamentos habituais. Essas mudanças de estilo de vida e disciplina extrapolam o contexto religioso para a vida social.
2. Em relação à categoria “Sentido de vida”
Elementos de bem-estar como paz, equilíbrio, felicidade e conforto se articulam com a presença da divindade, o que parece fornecer sentido para a vida presente e futura.
Entende-se, aqui, sentido de vida quando os objetivos e significados estão claramente definidos. O sujeito vive em uma constante busca por propósitos e significados em sua vida.
Essa busca se dá por meio de questionamentos sobre o objetivo de sua existência no mundo.
A resposta, tida como espiritual, é procurada nas mais diversas religiões, porém, somente após a inserção na UDV, o consumo do chá e as visões por ele produzidas, é que fazem com que o indivíduo acredite que tenha encontrado essas respostas e se sinta inserido no mundo, tendo uma melhor compreensão sobre as coisas que faz e suas motivações.
O indivíduo relata dúvidas e questionamentos que impediam a definição de objetivos claros na vida, o que pode ser entendido como a falta de alguma coisa que ele não sabia identificar e que lhe causavam inquietação.
Ele cita questões como pós-morte e reencarnação como possíveis respostas que o chá oferece.
A obtenção de respostas sobre a vida e a mudança de sentido por esse entendimento são vistas como positivas.
O sujeito encontra, no efeito no chá, a possibilidade de sentir uma força que pode ser comparada à manifestação do espírito santo, que não era sentida em outras religiões. Essa força pode ser nomeada como o sentido para a vida.
3. Em relação à categoria “Crescimento pessoal”
O crescimento pessoal é observado quando a pessoa compreende que cresce e se desenvolve gradativamente.
O desenvolvimento ocorre subjetivamente, ou seja, a pessoa se volta para si mesma, para as suas potencialidades, para o seu lado espiritual de forma autônoma, sem necessitar de outrem para que isso aconteça.
Uma das formas visíveis desse desenvolvimento é quando o sócio troca os graus, sem fazer distinção de raça ou classe social, valorizando a individualidade de cada um, uniformizando o linguajar para que haja compreensão e entendimento de todos.
Dessa forma, todos possuem a mesma chance de subir nessa hierarquia como simbologia espiritual.
Através das mirações, o sujeito olha e analisa os seus próprios comportamentos, sentimentos e ações, passando a se autocorrigir.
Essa mudança torna-se mais fácil porque a miração contempla a possibilidade de ver e sentir um fato como se estivesse acontecendo em tempo real.
Há, assim, uma maior consciência do próprio eu e, com isso, a compreensão da necessidade da transformação do modo de agir.
O adepto realiza uma autoavaliação positiva acerca das mudanças em sua vida, após o seu crescimento pessoal e social.
É possível fazer uma análise do progresso sobre o antes e depois da inserção na religião, por meio de questões como a paz e as relações sociais satisfatórias.
4. Em relação à categoria “Relações sociais positivas”
Esta categoria se subdivide em duas subcategorias:
- as Relações de Amizade e de Trabalho e
- as Relações Familiares.
As relações de amizade e de trabalho
Para obter uma relação positiva com os demais, há a conscientização de que deve haver um autoconhecimento e cuidados consigo mesmo, a fim de que seu bem-estar repercuta nos demais.
O diálogo é trabalhado para que o sujeito tenha a visão dos conflitos e dos comportamentos inadequados que esteja produzindo, e também para que saiba escutar os apontamentos dados pelo próximo.
Essa prática é realizada e acatada pelas opiniões oferecidas pelos discípulos e outras pessoas que fazem parte do convívio social.
Um dos aprendizados encontrados na UDV é a valorização da amizade do outro, independente de classe social ou etnia. Isso pode ser verificado na padronização das vestimentas e na distribuição igualitária de afazeres, para que todos aprendam a respeitar o próximo.
Mesmo havendo hierarquia, ou seja, graus mais elevados, o mestre geral, que está no topo, tem o mesmo tipo de tratamento e deveres que os demais, dando, com isso, exemplo de humildade, de responsabilidade e respeito ao outro como ser humano, e não apenas por ser uma autoridade.
São reforçados os laços sociais por meio do voluntariado e do companheirismo.
Dessa forma, ninguém fica sobrecarregado de trabalho e todos cumprem suas tarefas igualmente, divididas para que se obtenha resultados eficazes e progressivos.
Todos os ensinamentos e condutas aprendidos dentro do contexto religioso do chá devem repercutir na vida social fora da instituição, ou seja, no trabalho, em casa e nas atividades de lazer.
Mesmo que o sujeito possua um grau mais elevado, ele aprende que não há distinção na forma de tratar as pessoas e que as relações sociais se constroem de maneira pacífica.
As relações familiares
A religião e seus ensinamentos motivam a valorização da família e das pessoas de modo geral, fazendo com que não haja apenas pensamentos voltados para si e para o bem-estar individual, mas sim das demais pessoas à sua volta e, sobretudo, dos familiares.
O indivíduo alcança um sentimento de estar completo e feliz, ao ver sua família também inserida na religião, pois ambos, família e religião, caminham lado a lado em sua vida, não existindo a necessidade de dividir-se ou dar prioridade a um ou a outro.
O adepto aponta mudanças positivas no casamento e fortalecimento da união com o cônjuge após os ensinamentos recebidos pelo chá e pela religião.
Os ensinamentos da religião permitem que o indivíduo constitua uma família e crie os filhos dentro da instituição, o que é avaliado como satisfatório, uma vez que afirma que os filhos se tornaram pessoas confiáveis.
5. Em relação à categoria “Aprimoramento da cognição”
Cognição é o processo de conhecer, de aprender, em que estão incluídos os pensamentos, a atenção, a percepção, a memória e o raciocínio.
Após a inserção da ayahuasca no cotidiano do sujeito, sua memória fica “graduada”, ou seja, o adepto usa essa terminologia para explicar que ele passa a regular a cognição para prestar mais atenção no ambiente em que vive e nas coisas que acontecem ao seu redor.
A consequência é uma melhor percepção e compreensão, não somente nas suas mirações, mas também nos estudos, na cultura e nas relações com os outros.
Entende-se que ele observa tudo com mais acuidade e, por isso, a memória fica mais treinada.
O chá tem um sentindo conotativo, para seus adeptos, de “tirar o véu dos olhos”, respondendo dúvidas existentes, o que lhes proporciona uma visão mais abrangente de tudo o que lhes acontece e também de suas causas.
Essas consequências, nas formas de percepção, podem ser entendidas, aqui, como implicações do estado alterado de consciência, que é o transe, ou viagem, no qual o sujeito tem a sensação de viver outra relação com o mundo, consigo mesmo, com a sua identidade e com o seu corpo, por efeito das fortes alucinações.
Isso é o que os adeptos chamam de graduação da memória e é um dos principais efeitos do chá.
A alteração da consciência se deve aos componentes alucinógenos, e as visões são resultantes da condução das cerimônias pelos mestres por meio das músicas e das verbalizações.
A energia sentida ao consumir essa beberagem proporciona uma atenção e concentração mais aguçadas aos estímulos do meio, oferecendo maior capacidade de compreensão e interpretação.
Os sujeitos relatam ver as coisas além da objetividade, que passam a desenvolver o senso crítico e a formular suas opiniões, ao compreenderem tudo o que acontece em seu cotidiano.
Há uma ampliação da visão e da consciência, que proporciona um olhar mais sensível aos acontecimentos, fazendo-os observar a realidade não mais de forma generalizada, e sim com profundidade, cada vértice que compõe a situação ou o problema.
Segundo os relatos, essa mudança na consciência não traz prejuízos, e é possível, após o consumo do chá, dar continuidade às atividades diárias, mesmo que elas exijam um grau de atenção como dirigir.
6. Em relação à categoria “Autoconhecimento”
O “cozimento” e o processo em que ocorre permitem, como efeito, o desenvolvimento do autoconhecimento.
É o conhecimento de si, uma vez que influencia o sujeito a voltar as observações e avaliações para si, para os seus pensamentos no contexto subjetivo e, no âmbito material, para tudo o que possui.
É construída uma relação de benefício entre a situação que precisa ser recarregada e o chá que oferece energia. Isso se torna fácil quando o sujeito julga se autoconhecer e autocompreender-se em vários contextos.
Ademais, é destacada uma importância significativa aos próprios desejos e aos sentimentos, passando a não apresentar apenas os comportamentos desejados pelas outras pessoas.
A segurança e confiança de permitir-se ser o que acredita é visualizada novamente no relato de um sujeito que explica que o chá admite que ele se examine, que ele veja pontos em que precisa melhorar e se sinta em paz com isso.
7. Em relação à categoria “Autonomia”
A miração provocada pelo chá mostra ao indivíduo as coisas que ele fez e as possibilidades de mudança, estimulando a iniciativa e a liberdade de autocorrigir ou não.
O desenvolvimento da autonomia, que se dá por meio do sentimento de iniciativa, ocorre de dentro para fora.
O sujeito vê nas mirações a legitimidade e veracidade das decisões a serem tomadas, sendo ele totalmente ativo e presente no processo de definir como se comportar e formular o que é certo ou errado.
8. Em relação à categoria “Religiosidade”
O chá de ayahuasca tem a função de ensinar ao sujeito a realizar uma ligação com a divindade, com Deus, porque assim ele acredita que obterá o conhecimento das causas dos problemas.
Essa busca por soluções remete o adepto à necessidade de transformações das práticas de paz e de harmonia com a sociedade e com a natureza.
Os adeptos do chá acreditam que é pela natureza que se chega à Deus, e é o chá, o sagrado da natureza.
A fala do sujeito permite entender que foi somente após o consumo do chá que houve um encontro com Deus.
Anteriormente, se dizia ateu e aprendeu, com os os ensinamentos do chá, a realizar uma ligação com o divino.