Desde a década de 1990 esta bebida vem sendo empregada no tratamento da dependência. Existem atualmente alguns centros espalhados pela América do Sul que realizam este tipo de tratamento.
A ayahuasca é uma bebida psicoativa utilizada por diversos grupos indígenas por toda a Amazônia, assim como por xamãs mestiços (chamados “vegetalistas”) e por religiões e grupos independentes no Brasil.
Realizei trabalho de campo em quatro deles, um no Peru e três no Brasil. Neste artigo faço uma pequena descrição etnográfica destes centros e teço algumas considerações sobre o papel da experiência durante o efeito do chá no processo de recuperação da dependência e também da possibilidade deste tipo de tratamento não ser uma mera terapia de substituição.
Texto Original de “A ayahuasca e o tratamento da dependência” Tese de Pós-Doutorado de Marcelo S. Mercante
Introdução
Este texto é resultado da coleta de dados feita para o projeto de pesquisa de pós-doutorado que teve por objetivo o estudo de três comunidades no Brasil e uma no Peru que utilizam a ayahuasca para tratar dependência.
Vale dizer que, inicialmente, havia sido feita a opção de colocar no título deste projeto as categorias “dependência química” e “alcoolismo”. Contudo, percebi ser esta uma redundância, pois o alcoolismo é uma modalidade de dependência química. Além disso, outras modalidades de dependência que não a química estavam sendo tratadas nos centros visitados.
Um dos fatos que devem ser levados em consideração sobre o atual trabalho é que as instituições brasileiras estudadas estão em uma situação legal ambígua. A ayahuasca foi regulamentada em 2010 apenas para o uso religioso, desvinculando a prática terapêutica dos efeitos do chá, baseando eventuais curas em “atos de fé”.
Assim, o GMT recomendou que o uso terapêutico do chá ficasse em suspenso até que experimentações humanas pudessem ser realizadas para avaliar se este uso é seguro. As instituições pesquisadas alegam só empregá-la em suas práticas religiosas. Contudo, tais práticas possuem um efeito terapêutico, ainda que este seja atribuído ao ritual.
Curiosamente, um dos centros pesquisados possui título de Utilidade Pública conferido pela Câmara Municipal local, e outro está ligado às Secretarias de Saúde e da Justiça de seu estado. Takiwasi é uma das poucas comunidades terapêuticas no Peru que possuem um reconhecimento legal, expedido pela Dirección Regional de Salud de San Martin (Saldaña & Guirrimán 2008).
A “onda” da droga e a “onda” da Ayahuasca: qual a diferença?
Uma das perguntas que fiz durante as muitas entrevistas conduzidas ao longo da pesquisa foi: “qual a diferença entre a ‘onda’ (ou o efeito subjetivo) da droga e a ‘onda’ da ayahuasca?”.
Para minha surpresa, várias pessoas atestaram que, inicialmente, não havia grande diferença. Muitos dos entrevistados relataram experiências de perseguição muito similares às que eles experimentavam quando, por exemplo, fumavam crack.
Eu já havia colhido este tipo de relato quando da pesquisa sobre a Ablusa, em 2007 (ver Mercante 2009), instituição que utilizava o Vegetal na recuperação de moradores de rua em São Paulo.
Contudo, a ayahuasca proporcionava outro tipo de experiência: o arrependimento, a crise de consciência.
A frase “pude ver o mal que estava fazendo à minha família” foi repetida em muitas entrevistas.
O ambiente onde se está utilizando o crack ou a mela não ameniza em nada o sentimento de “paranoia”, muito pelo contrário, estimula-o e provavelmente o amplia. Quando o dependente bebe o chá e este começa a fazer efeito, o medo retorna para este dependente.
Contudo, há no uso do chá um ambiente ordenado, e há, acima de tudo, outras pessoas presentes que já passaram por esse processo e que vêm reconstruindo suas vidas com o apoio do chá.
Assim, este sentimento inicial é superado, passa-se à crise de consciência, e depois à esperança de reconstrução de uma vida nova, de perdão, de amparo.
Este modelo aponta, mais uma vez, para uma profunda interação entre química e sociedade, ritual e experiência, neurofisiologia e cultura (ver Lende 2005). Não seria a droga per se que causaria a experiência do indivíduo, mas um processo muito mais complexo.
Não é o crack ou a mela que causa a “paranoia”, mas o contexto do uso desta substância. Como coloca Becker, de forma irônica (1967:163), “se a droga de fato provar ser a causa de uma psicose bonafide, este será o único caso no qual uma pessoa pode afirmar com autoridade que encontrou a única causa deste fenômeno”.
Não estou aqui querendo afirmar que o uso ritual de crack ou de mela possa ser a saída para a dependência. Se isso fosse possível, já teria ocorrido. Nem estou dizendo que a química não tem relação alguma com a “paranoia”, mas sim que tal base bioquímica não é a única causa.
Afinal, como coloca Simões (2008:16): “Sem dúvida é importante conhecer os produtos e suas propriedades, mas este é apenas um dos eixos da questão. É preciso levar em conta também a relação humana com tais produtos, as motivações e os sentidos ligados à produção e ao uso de substâncias específicas”. Continuando com Becker (1967:166), nós tomamos como ‘dado’ que o usuário inexperiente de drogas, ainda que ele queira ficar “chapado” [“high”, no original em inglês], não espera uma experiência tão radical que coloque em jogo o senso comum sobre uma série de pressupostos. Em qualquer sociedade em que a cultura contenha noções de sanidade e insanidade, a pessoa que percebe seu estado subjetivo alterado pode pensar que ficou louco.
Assim, se a pessoa fica “higher” — mais “chapado” — do que espera, ela pode ter uma amostra do que é a insanidade, capaz de ser muito bem ser representada pela sensação de perseguição (a “noia”) durante o efeito da droga. Este é o reino do caos, da não cultura, da não sociabilidade, sem regras. E, sem regras, a mente perderia seu suporte. É aqui que cessa o processo do uso de substâncias como o crack e a mela.
A diferença então se constrói no uso da ayahuasca. Aqui também há um momento de ruptura, de caos. Mas é construído um meio para que ideias sobre modos de sociabilidade, de vida, de prazer, de punição etc. venham a ser modificadas.
Assim, durante esse período de transição entre ideias, o indivíduo pode se encontrar no mesmo reino de caos em que se encontrava antes. Contudo, esse “caos” é visto então como um sinal de mudança, de cura, pois se reconhece que se está exatamente nessa fase de transição.
Na verdade, a estruturação do “caos” viria de forma mais contundente no dia a dia do tratamento, no convívio com outras pessoas que tentam superar o mesmo problema.
No caso de Takiwasi, há a psicoterapia — seja em grupo, seja individual — e há a convivência diária dos pacientes. Em Caminho de Luz, boa parte desse reordenamento se dá nas sessões e nas reuniões, como os momentos de perguntas e respostas “feitas na luz do Vegetal”, mas também nas conversas informais. E, no Céu Sagrado e no Céu da Nova Vida, há a imersão na vida da Igreja. Como coloca Carneiro (2008:72), “a prevalência de um fluxo coletivo irrompe sempre que o edifício da subjetividade é abalado”.
O “fluxo coletivo” que irrompe durante o uso do crack ou da mela seria o fluxo do pânico, da tensão, da suspeita, da satisfação de uma necessidade “básica” (a “fissura”) individual. Já durante o uso da ayahuasca o fluxo coletivo estaria baseado na irmandade, em “verdade, amor e justiça”, na “luz”, na reconstrução da própria vida.
Vargas (2008) faz considerações nesta mesma direção. O efeito das drogas estaria, para este autor, sempre articulado com “diferentes modos de engajamento com o mundo” (:56). Vargas indica que haveria então dois tipos de drogas: as que permitem viver a vida em “extensão”, ou seja, ter uma vida mais longa; e as que, no caso de um uso não medicamentoso, “atualizariam outros modos de engajamento com o mundo, modos estes que se pautariam por considerar a vida não mais em extensão, mas em intensidade” (:56).
E é na manutenção de tal “intensidade” que modelos como os dos centros que utilizam a ayahuasca no tratamento da dependência se apoiariam, uma vez que não se propõem a trocar a droga ilícita por um modelo de vida sóbrio, mas sim que se passe a ter outro tipo de contato com a “intensidade”. Não se nega o acesso ao êxtase, mas se cria um veículo estruturado e formal (no sentido de que se tem e se fornece uma forma, um molde, um modelo) para tal acesso.
Terapia de substituição
Outra questão que surgiu ao longo desta pesquisa foi se o uso da ayahuasca não seria simplesmente um processo de substituição de uma droga por outra. O uso da ayahuasca (assim como o AA — ver Antze 1991, e o peiote — ver Halpern et al. 2005; Garrity 2000) está voltado para um processo de reconstrução da vida do dependente.
Um exemplo claro de terapia de substituição pode ser encontrado no uso (legal) de metadona para tratar heroinômanos (ver Bourgois 2000). Aqui não há tal preocupação — a de reconstrução da vida do dependente — mas apenas o desejo de se manter o dependente em um estado socialmente produtivo. Burgois (2000) coloca que o uso de metadona é uma ferramenta de controle deste dependente. Tal suposição — que a ayahuasca seria uma terapia de substituição — estaria pautada exatamente na tendência de nossa sociedade de coibir os estados não ordinários de conscientização (ver Mercante 2010, 2012).
Marras (2008) coloca, por exemplo, que os efeitos das substâncias psicoativas não estariam na “substância em si”, nem na “sociedade”, mas na agência de uma sobre a outra, na rede entre ambas, e que nossa sociedade veria nas experiências com psicoativos um “excesso de subjetivação” (:175), excesso este que colocaria em risco a manutenção da vida em sociedade, tida como a contraparte objetiva da existência:
É como se a vida social, que se realiza como uma espécie de outro eu internalizado no indivíduo (o eu social), estivesse ameaçada de se desfazer pela ação da vida excessivamente subjetiva do mesmo indivíduo, que então precisa manter o equilíbrio, que é o social, a estabilidade. Manter a consciência é manter a estabilidade e é manter a sociedade — eis a ordem (Marras 2008:175).
[Dessa forma,] alterar a consciência seria uma grave ameaça de rompimento com essas redes amplas e contratuais que dão origem a esse constructo altamente valorizado do par indivíduo/sociedade. Por isso o uso de psicoativos, nessa mesma sociedade, deve ser controlado (como as bebidas alcoólicas e como todas as outras substâncias indexadas). O esforço por manter estável a subjetividade individual, isto é, a identidade física e consciente, civil e política da pessoa individual — ou desta noção individual de pessoa (…) Simetricamente, prevalece o desinteresse em se investigar e criar terapias a partir dessas substâncias, a despeito do comprovado sucesso, historicamente relatado, alcançado em pesquisas com psicodélicos (:179).
Raiol Marcelo, técnico em dependência química que estava trabalhando na Caminho de Luz e que não bebia o Vegetal, colocou que
nesse mês em que fiquei observando, no período inicial, entre 10 e 15 dias, existe uma forma de substituição da droga. Parece que quando ele [o dependente] chega, ele vai atrás, a todo instante, do Conselheiro que serve o Vegetal, como se aquilo fosse uma espécie de “onda”, de ele estar substituindo aquela sensação de relaxamento que a droga dá pra ele pela “borracheira” que o Vegetal dá pra ele, e este seria um uso inadequado do Vegetal. Mas a gente vê que isso é no início, quando ele não tem ainda conhecimento dos ensinamentos da própria União do Vegetal, da religião. Mas isso ajuda a desintoxicar de forma natural, trabalhando na ansiedade que o uso de drogas dá, devido à abstinência.
Oscar, paciente em Takiwasi, oriundo da Espanha, contou que “na Espanha se dá muito antidepressivo para tratar o uso de cocaína. Mas isto é como ter um doente para o resto da vida. Essa é uma pessoa que não pode se reinserir completamente na sociedade”. Perguntei a ele então sobre a diferença entre o uso de metadona (no caso do tratamento da dependência de heroína) ou antidepressivos (para cocaína) e a ayahuasca, e ele disse que havia sim uma diferença, pois “a ayahuasca não causa dependência, e a metadona e os antidepressivos, sim. Aqui [em Takiwasi], tomas ayahuasca, mas no dia seguinte você não quer tomar. No meu caso, me sinto saturado de ayahuasca. Ela me mostra algumas coisas, mas depois quero colocá-las em prática. Não quero mais revelações, mas quero praticar“.
Gabriel, também paciente em Takiwasi, francês, passou pela terapia de substituição de heroína por metadona:
quando eu tive essa adicção à metadona, aos psicotrópicos, que são drogas “legais”, quando estive em um tratamento dado pelo Estado, me pareceu que era apenas para que eles [as outras pessoas] pudessem dormir mais tranquilos. Com o consumo de heroína, eu roubava, fazia coisas más para a sociedade, e dar metadona para os toxicômanos é dizer mais ou menos “que se droguem, mas não nos molestem mais”. Só serve para que a sociedade tenha uma “boa consciência” de que está ajudando.
Conclusão
O trabalho com os grupos pesquisados se mostrou bastante rico. Mas, como se tratou de uma pesquisa pioneira, foram levantadas muito mais dúvidas do que respostas. E, exatamente porque se trata de um estudo pioneiro, sua função foi exatamente esta: avaliar a complexidade deste campo (ou campos, na medida em que se trabalhou com várias instituições) e apontar direções para que novas pesquisas sejam feitas no futuro, tanto com uma perspectiva geral (ou seja, quando o tema é ayahuasca e dependência), quanto particular (questões específicas e inerentes a cada instituição avaliada).
O que quero enfatizar aqui é que existe o que chamei de “modelo da ayahuasca”. Neste modelo se trabalham, através do chá, as questões neurobioquímicas da dependência e as questões sociais. Modifica-se a química do cérebro/sistema nervoso e trabalha-se sobre questões psicológicas e de convivência, pois se entende que as modificações neurobioquímicas não se sustentam caso não seja modificado o ambiente (tanto interno/psicológico quanto externo/de convivência) onde este sujeito está inserido.
A ideia é que o uso da ayahuasca traria à tona uma série de emoções que são gatilhos para o uso de drogas, permitindo que o paciente atue sobre estas emoções durante o efeito do chá.
Caso o paciente não reconstrua seu mundo interno/psicológico a partir de uma nova perspectiva e com isso modifique sua maneira de se relacionar com os outros (o que inclui participar de novos grupos sociais), a recaída é inevitável.
Este é um dos pontos de apoio para se afirmar que o uso de ayahuasca para tratar dependência não é meramente uma terapia de substituição.
O que vemos ao longo do tratamento — além da “limpeza” física, psicológica e espiritual — é um processo de limpeza “moral”. Mais uma vez, o “modelo da ayahuasca” alinha distintos modelos de tratamento.
As diferentes instituições tentam convencer seus pacientes de que há um modo correto de estar no mundo, e que se tal modo for seguido, a chance de recaída é menor ou mesmo inexistente. Há uma ênfase muito grande em colocar a “droga” na esfera do “mal”, do “erro”.
A ayahuasca, por sua vez, pertence “à luz”, “à ordem”, “à limpeza”, ao que é “correto”. Com esta operação, mais uma vez, o tratamento com ayahuasca afasta-se de uma terapia de substituição.
Há ainda outro contraste contundente: as drogas proporcionavam momentos de prazer intenso, resultando, contudo, na desestruturação da vida do dependente. Por outro lado, as experiências com ayahuasca (assim como com as plantas purgativas) podem ser extremamente desagradáveis, mas possuem um efeito estruturante na vida do paciente.
Tal efeito é construído principalmente pela convivência com o grupo. Não é apenas a sensação de bem-estar físico que acontece no dia seguinte a uma sessão de ayahuasca, como foi descrito pelos pacientes que entrevistei, mas mesmo quando esta sessão é desagradável, ela é proporcional a uma limpeza “moral”.
Este bem-estar é reforçado pela ação do grupo, e não só pela da instituição e de suas normas de conduta, e advém do convívio entre os pacientes, o que reforça os parâmetros do que é “bom” e do que é “ruim”.
A “cura” viria por uma adesão cada vez mais irrestrita ao lado “bom”.
A transformação pessoal e social é alvo de diversos tratamentos. O AA faz disso o centro de seu processo. Como coloca Antze (1991), “Na verdade o AA faz mais do que ajudar o bebedor compulsivo a se livrar de um hábito problemático. O AA o coloca dentro de uma comunidade que, de forma global, reordena sua vida.
O AA lhe fornece um novo entendimento de si mesmo e novas motivações para agir — de fato, uma nova identidade” (:149). Antze diz ainda que o grupo acaba por dar suporte social e psicológico aos dependentes: “o grupo fornece uma identidade e um senso de propósito aos membros, ele os educa em como ter uma conduta geral de vida, e os liga a uma comunidade” (:151).
Este sentido de pertencimento a uma comunidade é o que os auxilia a vencer o egoísmo, indicado por Antze como a raiz do problema do alcoólatra, exatamente porque, ao não conseguir do mundo o que deseja, o alcoólatra se vê imerso em sentimentos de raiva, ressentimento, depressão, medo e autopiedade, sentimentos estes que o induzem a beber.
Laudet et al. (2002) corroboram este entendimento da importância do grupo no processo de recuperação, mas a partir de uma outra perspectiva. Segundo estes autores, o suporte da família e dos amigos é fundamental para a manutenção da abstinência.
Como coloca claramente o Escritório das Nações Unidas para a Droga e o Crime (em conjunto com a Organização Mundial da Saúde — ver UNODC/WHO 2008):
a dependência de drogas é considerada uma desordem da saúde de ordem multifatorial […] Recentemente, o modelo biopsicossocial tem reconhecido a dependência de drogas como um problema multifacetado, requerendo a experiência de várias disciplinas. Uma aproximação multidisciplinar a partir das ciências da saúde pode ser aplicada à pesquisa, prevenção e tratamento. Durante as últimas décadas, a dependência de drogas tem sido considerada, de acordo com as diferentes crenças ou pontos de vista ideológicos, como:
- somente um problema social,
- somente uma questão educacional ou espiritual,
- somente um comportamento culposo a ser punido,
- somente como um problema farmacológico.
A noção de que a dependência pudesse ser considerada uma doença “autoadquirida”, baseada na escolha livre e pessoal da primeira experimentação com drogas ilícitas, tem contribuído para o estigma e a discriminação associada com a dependência de drogas. Contudo, evidências científicas indicam que o desenvolvimento da doença é o resultado de uma interação complexa e multifatorial entre a exposição repetida às drogas e fatores biológicos e ambientais.
Esta perspectiva demonstra que a dependência deve ser entendida não apenas como um problema químico, psicológico ou moral, mas sim como um problema essencialmente social e cultural — algo que já foi apontado por diversos autores, como, por exemplo, Alexander (2008), Langdon (2004) e Room (1985) — mas ela assume também, de acordo com a perspectiva dos centros pesquisados, um aspecto “espiritual”.
A questão que se coloca então é: será que este “aspecto espiritual” serve simplesmente como mais uma ferramenta (aparentemente adequada) para uma ressocialização do dependente (ver Sanchez & Nappo 2007; Panzini & Bandeira 2007; Heath 1987)? Ou será que, além disso, haveria um “algo mais” proporcionado pela experiência de transcendência que reorientaria toda a vida do dependente?
Schneider (2010), por exemplo, coloca que é exatamente tal vivência da espiritualidade promovida pelo chá que leva à “transformação” do dependente, trazendo-o de volta a uma vida social que estava sendo negligenciada.
Alpert & Lostof (2007) também indicam que a recuperação da dependência é entendida como um acontecimento espiritual, segundo a visão de pessoas que passaram por um tratamento com iboga.
Além disso, se a “adicção” e a “dependência” foram “descobertas” no século XIX, estes são problemas relativamente recentes, provavelmente resultantes do estilo de vida que temos em nossa sociedade.
Será então que a dependência, mais que um problema, não seria um sinal, um efeito (colateral) de nosso estilo de vida?
É importante frisar que o “sinal” seria a dependência, e não a busca de estados especiais de percepção — esta busca é tão antiga quanto o ser humano (ver Winkelman 2000). Vivemos em uma sociedade fortemente “monofásica” (Lauglhin et al. 1992) ou “enteofóbica” (no sentido de que tem fobia aos chamados “enteógenos” ou substâncias psicoativas — ver Blainey, 2010), onde a única realidade válida é aquela com que se tem contato quando se está acordado, sem que se tenha ingerido nada que altere o modo como percebemos o mundo.
A dependência seria então uma reação de alguns (ou muitos) indivíduos “enteofílicos” e que não têm o devido espaço para dar vazão à sua afinidade. Os psicoativos são uma fonte de acesso a tais estados “multifásicos”, uma porta para a transcendência, transcendência esta que foi indicada por vários de meus informantes como tendo sido buscada, de forma equivocada, através do uso de drogas e do álcool.
Estas são questões complexas que não podem ser respondidas em um único texto ou mesmo no decorrer de uma pesquisa. Mas que devem ser levantadas, expandindo os horizontes da pesquisa em andamento e justificando a realização de uma revisão bibliográfica mais ampla envolvendo este tema.
“A ayahuasca e o tratamento da dependência” Tese de Doutorado de Marcelo S. Mercante
Texto em completo em PDF nesse link: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132013000300005&lng=en&nrm=iso
Marcelo S. Mercante é professor visitante. Departamento de Antropologia, UFMG. E-mail: <marcelo_mercante@yahoo.com>